terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Interrogação e Intuição

Apresentação e Descrição da Pesquisa

Originada no texto de Maurice Merleau-Ponty Interrogação e Intuição[1] a investigação aqui descrita teve como tema o exame das noções do corpo, da diferença e da arte na formação de professores. O problema de pesquisa foi assim formulado: como reconhecer os caminhos de ensino e de aprendizagem do corpo vivido na experiência estética?
A primeira questão que tivemos que lidar foi acerca do saber. Muitas são as atitudes diante do mesmo. Por exemplo, o cético assume: não se pode saber. O cínico finge saber ou não saber. O filósofo propõe quero saber. Quando o filósofo começa a interrogar, destrói (aparentemente) as bases do homem natural que pauta sua vida no sensível. Quando o filósofo pergunta o que é o mundo? - a pergunta põe à prova uma certeza. A dúvida metódica: suspeita de uma certeza que pode levar à algum tipo de evidência. Merleau-Ponty sugere: eu quero saber o não saber. Para isso a interrogação deve por ela mesma em questão. Que sei eu? Interrogação permanente. Falsamente acreditou que a dúvida filosófica está na pergunta que já há respostas. Merleau-Ponty não sabe nada, mas tem expectativa do homem natural, daquele homem que não é capturado por uma tese. Não tem certeza, mas tem fé na vida, trata-se de um saber que não sabe e não se tem controle. Eu vivo no não saber. Eu me comunico com você com aquilo com o que eu não sei de mim. Essa relação com o outro só se dá na incerteza. Não se trata de encontrar, trata-se de perder. Não está no campo do saber, está na transcendência. Assim a dúvida se desvela como uma possibilidade de comunicação.
O filósofo se inspira no artista, pois não para de perguntar. O artista é alguém que pergunta sem conceitos, sem palavras. O artista só pode criar o que não conhece. Só quando a sensibilidade preenche o pensamento eu tenho o conhecimento (Müller, 2006)
Estas reflexões foram o estofo do processo que nos possibilitou realizar a pesquisa aqui em pauta e, primeiramente, examinar a noção de ação criadora a partir da proposição e aplicação de um método de ensino da dança para professores em formação. Em segundo lugar, conhecer como professores em formação e platéia percebem a contribuição do dançarino com cegueira no processo coreográfico. Além de examinar as relações entre corpo, dança, cegueira e a formação de professores, tendo como ponto de partida as atividades corporais, de arte e dança oferecidas para alunas do curso de Pedagogia do CED da UFSC.
O relatório apresentará em seu primeiro item da apresentação e discussão dos resultados uma revisão da literatura acerca do ensino da dança, o segundo item o método, apresentamos uma fenomenologia da dança, pois, notoriamente, nossa pesquisa se pauta no estilo fenomenológico. No terceiro item elucidamos, primeiramente como a especificidade de um trabalho com dança com jovens e adultos com cegueira possibilitou a criação de uma experiência de ensino e apreciação da dança intitulado Jornadas, descrita no quarto item. No último explicitaremos a noção de coragem de ser na ação criadora da dança ao examinarmos como professores em formação criam sua própria dança.
6.1 Indagações acerca do ensino da dança

Que questões estão circunscritas no contexto da arte que sustentam, ou não, a presença do ensino de dança como disciplina acadêmica nos cursos de formação de professores? À guisa de introdução, iniciaremos o texto com uma revisão da literatura a respeito da dança na educação, com vistas a explicitar tais questões. Os artigos selecionados evidenciam, em primeiro plano, que embora se esteja produzindo conhecimento referente ao ensino da dança, há uma ausência de debate entre os profissionais da área sobre esse assunto. Tal desconhecimento vai repercutir na prática e na criação artística da dança no contexto escolar, como os artigos indicados a seguir mostrarão.

A professora Silvia Soter (1998) problematiza a visão de que dominar a arte da dança não necessariamente assegura a capacidade de transmiti-la. Indaga: o que justificaria a presença da Educação Somática nos programas de formação do professor de dança? Ainda que dominar a arte da dança não garanta a arte de transmiti-la, é sobre a experiência vivida, sobre a prática cotidiana no corpo do dançarino, que a capacidade de ensinar vai ser construída. É no cruzamento entre conhecimentos teóricos, prática sólida e reflexão sobre essa prática que o “saber-fazer”se molda em “saber-aprender”, para enfim se transformar em “saber-ensinar”.

Embora se vivencie um momento profícuo de desenvolvimento da dança, detecta Claudia Damásio (2000), pouco se discutem as questões ligadas ao ensino da dança, como ele se dá, o que privilegiar nesse trabalho diário, o que faz o professor de dança.

Um panorama do ensino da dança nas universidades brasileiras é traçado por Dulce Aquino (2001), tendo como pano de fundo o curso de dança da Universidade Federal da Bahia. Essa autora observa a existência, no país, de um ambiente universitário propício a pensar a dança como área de conhecimento. No entanto, a formação do profissional de dança ainda se dá à margem desse contexto, ela constata. Destarte, se ao artista é possível se estabelecer no mercado profissional após uma trajetória de estudos não formais, dificilmente o crítico de dança, o curador, o pesquisador e principalmente, o professor de dança lograrão êxito se não buscar em um instrumental teórico no seio da universidade. Em seu artigo, Aquino enumera as características que devem ser resguardadas na elaboração dos novos currículos, sugeridas pela Comissão de Especialistas de Ensino de Artes Cênicas: dentre elas estão a articulação das atividades desenvolvidas pelo aluno no âmbito da universidade com aquelas pré-profissionais, desenvolvidas no seu campo profissional; a elaboração de uma proposta curricular contemplando a pesquisa básica e aplicada e a integração entre teoria e prática; a atuação ética, crítica e criativa em sua inserção profissional nos diversos âmbitos da sociedade; a articulação interdisciplinar e multicultural. Na Escola de Dança da UFBA, os vários conteúdos programáticos estruturam-se em três módulos pedagógicos, a saber: o primeiro, estudo do corpo; o segundo, processos criativos; o terceiro, estudo crítico analítico. Essa concepção pedagógica do ensino da dança visa a propiciar um nicho criador dos atores em seus papéis de professor, estudante e artista .

A avaliação em cursos universitários de arte, especificamente na dança, é o tema do texto de Ana Vitória Freire (2001). A autora indaga: como avaliar corpos histórica e culturalmente diferentes, inseridos em um mesmo contexto como a sala de aula, em matérias de criação ou improvisação? Quando se coloca um corpo como veículo de comunicação e expressão de um pensamento, traz-se com ele sua história, suas referências, suas emoções e seus limites. Indaga: como dissociar ou por que dissociar nosso conteúdo estético, se somos, quando nos expressamos, a representação desse corpo e desse pensamento? Admite: garantir uma aprendizagem qualitativa saudável e investigativa parece ser ainda, para a educação, um desafio árduo que requer cuidado, atenção e reformulação diária. Se por um lado o educador precisa aceitar que tanto ele quanto seu conteúdo estão sendo testados e avaliados pelos educandos, que agem e reagem a eles, por outro lado, nesse processo de troca de conhecimento, o estudante-artista precisa ser colocado como sujeito construtor e reconstrutor do saber aplicado, avaliando sempre seu processo, suas formulações, e não só transferindo o poder de decisão do seu percurso ao professor.

Metodologia para o ensino de dança: luxo ou necessidade? Desafiadora, a questão de Isabel Marques (2004) nos introduz no âmago do problema aqui em pauta, ao perceber que o avanço na produção de conhecimento, os documentos e as práticas na área de ensino de dança no país são sumariamente ignorados pela grande maioria dos artistas-professores, como se a experiência artística bastasse, como conteúdo, para poder ensinar. Essa restrição se amplifica desde o uso inadequado da terminologia, que confunde metodologia com didática, e esta última com pedagogia, até a ausência de compreensão acerca das diversas relações com a Educação, vindo a comprometer o processo de ensino-aprendizagem e a criação artística.

A formação profissional do artista da dança é o tema central do artigo de Marta Strazzacappa, que problematiza se seria possível alguém que não vivenciou o ofício da dança ser um professor de dança. A autora salienta que, independentemente de ser ou não institucionalizado, o ensino da dança é construído na relação entre o conhecimento, o educador e o educando, pois depende de quanto o educador conhece a dança e sabe despertar o interesse do educando mediante as próprias descobertas. Por sua vez, depende da dedicação do educando à experiência teórica e prática da dança. E, por fim, depende do quanto a escola favorece um ambiente propício para a articulação dessa relação.

Essa breve revisão literária apresenta questões pertinentes a propósito da inserção do ensino de dança como disciplina no curso de formação de professores. Os aspectos enfatizados nesses textos me parecem ser o ensino e aprendizado da dança. No entanto, há ainda um elemento ignorado nessas discussões, que corresponde à apreciação da dança. Bem nos recorda Betty Redfern (2007) que os estudantes de dança, nas universidades, nos cursos livres, e principalmente nas escolas, interessados em dançar, em assistir a espetáculos de dança e, talvez, compor ou coreografar, estão de um certo modo inclinados à discussão estética presente tanto na experiência quanto no julgamento a respeito do que é dança. A experiência estética é uma vertente que merece ser examinada ao se propor o ensino de dança nos cursos de formação de professores.

A contribuição do nosso texto para o debate a respeito do ensino da dança nos cursos de formação de professores privilegia três experiências: primeira, a experiência de ensino da dança, quando descreveremos as noções de dança a partir dos momentos vividos pelas estudantes participantes das Jornadas. A segunda, a experiência estética apreendida pelas mesmas enfatizada nos processos de observar, descrever, executar e criar e apreciar a dança. Uma terceira, a experiência do pensamento evidenciada ao se discutir as noções de Ser e não-Ser, presentes nas falas das participantes.


6.3 Referencial teórico-metodológico

6.3.1 Uma fenomenologia da dança

“A fenomenologia”, escreve Sokolowski (2000 p. 24): “reconhece a realidade e a verdade dos fenômenos, as coisas que aparecem. Não é o caso, como a tradição cartesiana nos teria feito crer, que “ser um retrato” ... está só na nossa mente. Eles são modos nos quais as coisas podem ser. O modo que as coisas aparecem é parte do ser das coisas; as coisas aparecem como elas são, e elas são como elas aparecem. As coisas não apenas existem; elas também manifestam as si mesmas como o que elas são.”


Em seu estudo sobre a fenomenologia da dança Dido Milne (1993) define essa como o encontro imediato do dançarino com o vivido da experiência da dança. Em sua leitura de Merleau-Ponty, destaca que nosso corpo não é entidade objetiva, mas totalidade vivida. Explicita que sinestésico significa uma combinação da visão com a audição, que torna possível ver o som e escutar a visão. Exemplifica com o dizer de Stravinsky sobre o trabalho de Balanchine: Ver a coreografia de movimentos de Balanchine é ouvir a música com os próprios olhos. Constata, também que os dançarinos, em particular, possuem uma consciência precisa do contorno de seu corpo quando estão em movimento. Argumenta que há muito tempo vem sendo negligenciado o aspecto intelectual da dança, em função do baixo status dado ao corpo humano. Os dualistas argumentavam que a mente era a essência do ser humano e o corpo era relegado ao papel de veículo, a casa, e o transporte da mente. A dança como um corpo de arte, era visto como irracional, subjetivo, fazer meramente com a expressão da emoção do dançarino, como oposto da arte que poderia ser analisada de um modo objetivo. Pautando na fenomenologia que tem mostrado como o corpo vivido é o sentido através do qual compreendemos essencialmente o que é ser humano, sugere que dança, a qual explora todas as complexidades do corpo, merece ser investigada.

Milne (1993) também avalia que um dos maiores desafios da dança moderna tem sido equilibrar o peso dado na percepção visual contra ao peso para os outros sentidos. Sendo assim discute a noção de prazer estético que deve ser visto e ver requer distância. Por exemplo, a distância estabelecida pela crítica para ver a dança. Ou seja, ver a dança como ver uma pintura. Esse processo admite, o autor, é visto como expressão da mais alta racionalidade objetiva, significa ordenação e representação do mundo. No entanto, recentemente essa perspectiva vem sendo questionada e apresentada como artificial. Pois, a proximidade do mundo dissolve a objetividade de qualquer ponto que existe em perspectiva. Em contrapartida, a dança contemporânea está no entorno do mundo externo entre o espaço e o objeto. O corpo vivido do dançarino está continuamente contato íntimo com o mundo. O autor ainda destaca que a arquitetura de teatro de vanguarda, desmantela a tradicional relação de voyeur entre espectador e dançarino. Identifica-se em projetos mais recentes o auditório está numa distância imediata do palco, possibilitando a platéia sentir o vivido na experiência da dança. Examina que no processo de criação das artes plásticas, embora apreciamos a obra com certo distanciamento crítico, com enquadramento e foco visual, no entanto, o trabalho é feito de modo tátil.

A proposição de uma fenomenologia da dança, explorada nos parágrafos anteriores ressalta, em primeiro lugar, a necessidade de uma estética “multi-sensorial”. Um segundo aspecto, que esse enfoque sugere é a contribuição efetiva da experiência perceptiva da cegueira para a compreensão da arte. Esse ponto será examinado a seguir.

6.3.4 Dança e cegueira - entre a razão e a sensibilidade
A visão tem sido um dos sentidos mais requisitados nesta virada de século. Vivemos numa sociedade do conhecimento. Neste contexto ver é conhecer. Gilliam Rose discute em seu livro Visual Methodologies (2001) a distinção que estudiosos contemporâneos tem feito a respeito da visão e da visualidade. Visão é o que o olho humano é fisiologicamente capaz de ver. Visualidade, refere-se ao que é visto e como algo é visto, sendo ambos construídos culturalmente. O termo “ocularcentrismo” foi cunhado por Martin Jay para descrever a aparente centralidade do visual na vida contemporânea ocidental. A centralidade do olho na cultura ocidental, se inicia quando observar, ver e conhecer se tornam entrelaçados. Bárbara Maria Stafford, uma historiadora do uso das imagens nas ciências, argumenta que, no processo iniciado no século XVIII, a construção do conhecimento científico sobre o mundo se torna mais em mais baseado em imagens do que textos escritos. Por conseguinte, Nicholas Mirzoeff sugere que a pós-modernidade é “ocularcêntrica”, não só em virtude das imagens visuais serem mais e mais comuns, nem tão pouco em razão do aumento da vinculação do conhecimento do mundo com a visualidade, mas por causa de nossa crescente interação com as experiências visuais culturalmente construídas. Deste modo, a conexão moderna entre ver e conhecimento é hiper estimada na pós-modernidade. A demanda no dias de hoje está em mais ver do quem em acreditar. Podemos, comprar um casa escolhida pela Internet, podemos ver nossos órgãos internos a partir de uma imagem de ressonância magnética. Podemos manipular nossas fotos em nosso computador.

Há imagens demais, constata Evgen Bavcar (2000), filósofo e fotógrafo não-visual. Esse autor argumenta que abundância de imagens-clichês no mundo moderno forma uma percepção abstrata das coisas que freqüentemente não existem mais por elas mesmas, mas somente através das imagens, sendo assim, a proximidade tátil é o mais seguro sinal de uma existência real. Em seu trabalho de fotógrafo compondo luz num espaço obscuro concebido como volume, Bavcar é consciente da separação do mundo do verbo daquele da imagem que ele busca reconciliar.

“Criamos dicotomias permanentes,” escreve Adauto Novaes (1997 p.13): “a consciência e a coisa , o sujeito e o objeto – divisões brutais que determinam com rigor as esferas do sensível e do pensado, do que vê e do que é visto.” É no intervalo dos sentidos,” continua esse autor: “que, segundo Merleau-Ponty, podemos descobrir que ver é, por princípio, ver mais do que se vê, é aceder a um ser latente. O invisível é o relevo e a profundidade é do visível. Aqui, o olho não é suporte natural do espírito, nem o espírito a sublimação da visão. O que Merleau-Ponty propõe é uma retomada, a partir de um momento “esquecido”, quando o pensamento de ver substitui o ver e fez dele seu objeto. Falando em quiasma ou entrelaçamento, procura desfazer corporalmente a distinção clássica entre sujeito e objeto, carne e espírito. Assim, descreve a relação carnal do sujeito e do objeto. Há uma universalidade do sentir e é sobre ela que repousa nossa identificação, a generalização de meu corpo, a percepção do outro. (Novaes, 1997 p.14)

A memória do corpo vivido, idéia que Bavcar desenvolve para além daquela que o senso-comum e o idealismo costumam usar, nos oferece sustentação na criação coreográfica. Ao examinar a obra desse fotógrafo, Adauto Novaes (2000) ressalta, primeiramente a noção de paralelismo, isto é, a idéia que impede qualquer superioridade do espírito sobre o corpo e do corpo sobre o espírito, como comentamos no parágrafo anterior. Nota, também que Bavcar realiza uma reflexão que passa pelo corpo e pelos sentidos, responde assim, a pergunta de Spinoza: O que pode o corpo? Indagação que induz, pois à demonstração de que o corpo supera o conhecimento que ele tem dele mesmo, da mesma maneira que o pensamento supera a consciência que ela tem dela mesma. Por conseguinte, percebe que a idéia de memória das sensações, que se pode ver nas fotos de Bavcar, coincide absolutamente com a idéia de memória expressa na Ética de Spinoza a memória não é outra coisa senão um certo encadeamento de idéias, envolvendo a natureza das coisas que estão fora do corpo humano. Por fim, Novaes, descreve esse encadeamento que se faz no espírito segundo a ordem e o encadeamento das afecções do corpo humano: “Através do tato, do deslocamento do ar que desenha o contorno daquilo que ele não vê com os olhos, através do olfato, através do calor, o corpo de Bavcar é afetado pelos objetos exteriores, criando a memória das sensações e formando figuras.” (Novaes, 2000 p. 32)






6.3. 5 Interrogação e Intuição na dança do Potlach

O Potlach Grupo de Dança se pauta num trabalho de pesquisa, ensino e extensão universitária para jovens e adultos com cegueira e com baixa visão. O elenco atual conta com a participação de 04 dançarinos com cegueira – e 03 dançarinas com visão, e estudantes do Centro de Ciências da Educação – CED da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. O trabalho foi desenvolvido na Sala Espaço do Corpo no CED/ UFSC, e na Associação Catarinense de Integração do Cego - ACIC, com sede no bairro Saco Grande, em Florianópolis, SC. Em dezembro de 2003 o grupo estreou o espetáculo QUATRO, no teatro da UFSC. No primeiro semestre de 2004 foi produzido ÁGUA CONSTANTE... processo coreográfico e apresentado no Espelhos da Educação no CED/UFSC. Em 2005 apresentamos “Embalos e Canções”, no Espelhos da Educação II e produzimos o vídeo dança Quatro. Em 2006 o grupo foi pré-selecionado no edital Rumos vídeo dança do Itaú Cultural.

Esse trabalho busca ser uma experiência de ensino e apreciação da dança pautada na pesquisa perceptiva sobre o ver e o não ver. Durante o processo de criação os dançarinos, por meio de entrevistas, descrevem suas experiências cotidianas e memórias corporais. As seqüências são compostas com base na improvisação e no contato corporal. O projeto tem como objetivo apreender a dança como uma experiência estética, para isso se propõe desenvolver atividades que promovam à comunicação não-verbal, ampliação do vocabulário de movimentos e contato com o outro. Com este trabalho de pesquisa perceptiva e sensorial, o Potlach tem por finalidade despertar no espectador uma experiência estética insólita e provocadora acerca do acolhimento da diferença.
Muitos indagam: Dança com dançarinos cegos? Cegos?!! Dança?!! Que dança é essa? Que movimentos são esses? Que corpo é esse? Quais sentidos, sensações, direções? A resposta: “É a dança do sei lá o que...” Esta dança se relaciona com a percepção do espectador. Pretende interrogar sobre uma dança expressa no entrelaçamento entre um dançarino que não vê e o espectador que o vê. Criar coreografias que buscam tecer relações entre o dançarino e o espectador. Trata-se de um jogo lúdico, dinâmico, criativo de reconhecimento do outro eu mesmo: o “nós”. Despertando, assim, uma dança forjada na sensibilidade, na temporalidade do corpo vivido, no visível e no invisível.
“Que sei eu?” Essa é uma pergunta que Maurice Merleau-Ponty apresenta em sua obra O Visível e o Invisível (2000), e que nos inspira a criar uma coreografia indagativa. Essa é a alternativa do filósofo à afirmação “Sei que nada sei” - instalada no ceticismo e que provoca uma dúvida que destrói as certezas. Mas as questões cotidianas estão aí, por exemplo, quero saber: onde estou? Que horas são? Questões que evocam um contexto, alguém que pergunta. Questões que são oriundas de nossas experiências como um “ser-no-mundo”. “Que sei eu?” Indaga Merleau-Ponty (2000), sem querer explicitar o que é o saber? Tão pouco quem sou? Mas, o que há? E ainda, o que é o há? Essas questões interrogam a nossa própria existência. E foi refletindo sobre a própria existência de dançarinos com cegueira que criamos uma coreografia que interroga o si e o mundo.
6.3.6 O PROCESSO COREOGRÁFICO: “Que sei eu?”
E foi refletindo sobre a própria existência de dançarinos com cegueira que apresentamos nossa proposta de videodança. Buscamos desvelar qual seria a questão existencial de cada dançarino não-visual[2] trazia em si e a partir daí criamos os blocos coreográficos. Exemplificando, o solo da dançarina Ione Bendo, intitulada Cotidiano enfatiza sua rotina, notamos que ela estrutura sua vida, buscando conhecer detalhadamente sua vida cotidiana. A coreografia Encontro com a cegueira revela a opção que o dançarino Alessandro com baixa visão opta por viver próximo de pessoas com a cegueira. A dançarina Ana Carolina, em suas freqüentes romarias com a avó ao Santuário de Madre Paulina roga: que eu possa ver os obstáculos, inspirou-nos a criar a coreografia O feminino e o Sagrado. Antonio Luiz Saretto, dribla a dureza da sociedade de lidar com a cegueira sendo dançarino e jogador de gol-ball, de seus movimentos criamos o solo Espelhamento Lúdico. Finalizamos, com a coreografia Eu e o mundo, apresentando a dançarina Taís Rodrigues, com sua vida em busca do amor, lembra que “eu e o mundo somos um no outro”.

O que nos interessa na dança é a experiência perceptiva daquilo que está sendo apreciado tanto pelo dançarino como pela platéia. O exercício da sensibilidade compreensível forjada no espaço-tempo vivido da dança. Diferente da fotografia, na dança opera a síntese que unifica os diferentes momentos temporais e um só tempo.

Um exemplo desta síntese pode ser encontrada na composição coreográfica da obra Que sei eu? interpretada pelo Potlach Grupo de Dança. No retorno das atividades conversarmos com os dançarinos do grupo sobre suas férias. Uma dançarina não-visual comentou que havia participado mais uma vez da romaria à Madre Paulina, indagamos sobre qual era o seu pedido à Santa e ela respondeu: -Que eu possa ver os obstáculos. Esse seu pedido, nos chamou atenção, e nos motivou a criar uma coreografia com gestos evocando a relação com o Sagrado. A conversa com a dançarina revela que “o futuro, na vivência da “antecipação espontânea”, é tal qual uma recordação involuntária, mas que se apresenta inteira vinda pela outra ponta, como uma síntese que se faz como inatualidade, desta vez, inédita. Husserl, na leitura de Müller- Granzotto ( 2007) admitirá, a antevisão do futuro é também uma síntese passiva de perfis inatuais. Só que eles não são necessariamente vazios. Eles são inatualidades cheias ou, o que é a mesma coisa, plenas de potencialidades. São essas mesmas potencialidades, ademais, aquelas que aparecem como horizonte de futuro de nossa motricidade. Essa última, parece simplesmente perseguir novidades.

As palavras da dançarina se tornam dança. Seus movimentos, orquestrados pela sonoridade da Ave Maria de Gounod e Bach, e um tecido transparente que lhe cobre o corpo, “há aqui uma peculiaridade, que propriamente distingue a motricidade da antecipação espontânea: para a motricidade tudo se passa como se essas novidades viessem prontas, como se tivessem sido formuladas mais além de si, um pouco antes dos gestos de procura. O que nos obriga a admitir, no caso da motricidade, um espécie de futuro que vem do passado, uma inatualidade cheia, mas indissociável de outra que é vazia, e de onde a primeira nasce qual significação: depois de compreendida a significação, nem se vêem mais as palavras pelas quais ela se manifestou.” (Müller-Granzotto, 2007, p.61-62)
De certo modo, esses episódios explicitam questões similares presentes atualmente na dança contemporânea. Que, por um lado, são muitas vezes incompreensíveis, pois novos signos estão sendo constantemente recriado, o que pode provocar estranhamento. Que dança é essa? Que movimentos são esses? Por outro lado, vale trazer à tona uma questão: se a dança é da ordem da explicação ou da descrição. Neste sentido, a percepção privilegiada de quem não vê propõe uma dança que não se explica, mas que se sente como nascente de um corpo perceptivo. Ou ainda, uma dança concebida a partir de pessoas não-visuais, interroga mais que explicita. Essa possível interrogação dançante demonstra que a experiência entre o dançarino e a platéia pode ser, sim, a de corpos entrelaçados.
Ao chegarmos neste ponto do nosso relatório aprendemos que a experiência perceptiva vivida no corpo de dançarinos com cegueira implica em superamos o dualismo ora sinto, ora penso. Uma fenomenologia da dança sugere que no tempo vivido da dança desvela-se uma atmosfera de milagre aonde o conhecer se funde com o ser, tornando encarnadas as palavras de Merleau-Ponty: eu e o mundo somos um no outro. Neste contexto surge a experiência da dança como jornada existencial. E assim indagamos, a vivência profunda com a dança possibilitaria despertar o corpo do professor para uma experiência estética?

[1] M. Merleau-Ponty, O visível e o invisível, São Paulo, Perspectiva, (1964), 2000
[2] Os termos não-visual, não-vidente são utilizados como sinônimos de cego e deficiente visual com o intuito de desconstruir os aspectos pejorativos e limitantes vinculados à experiência com a cegueira.

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